Abelha Rainha
Este conto teve sua publicação vedada por conter palavras obscenas, dando, assim, origem a outro texto: O que o cu tem a ver com as calças.
Eu era obrigada a lavar suas cuecas sujas de cocô. Quanta humilhação, ele era um devasso, um homem vulgar; qualquer outro sentiria vergonha de deixar que alguém visse aquelas vestimentas nojentas. Parecia até que era proposital, meu falecido marido lavava as dele durante o banho, quando acidentalmente sujava a parte de trás.
Não é assim que se deve iniciar uma história de amor, mas não sou uma romancista que tem leitoras deprimentes esperando o próximo livro que irá mudar suas vidas por algumas horas. Sou uma mulher inteligente, e por isso serei sincera o suficiente para não ter vergonha de contar meus amores – se é que se posso chamá-los de amores. Não inicio pelo que comumente chamam de a primeira vez, porque ela deixou marcas, porém estas foram atenuadas por outras “vezes” que vieram depois. Mas será que a primeira vez é a primeira relação sexual? ou seria o primeiro orgasmo? também poderia ser a primeira paixão, mesmo que a tenhamos vivido após o sexo e o orgasmo? e quando tudo vem disperso no tempo e desorganizado no coração? Não quero mais tentar entender estas coisas da alma e do corpo, prefiro contar a minha, nada extraordinária, história.
Josué, o morto, foi meu primeiro homem. Todos os dias pela manhã eu lhe dizia que o amava, mas nunca o amei. Era fácil me declarar, porque na verdade eu amava era a vida que ele me proporcionava: casa própria, fogão a gás, luz elétrica, televisão a cores, geladeira, sardinha enlatada – hum… eu adoro comida enlatada. Era uma vida de rainha, para quem não tinha nada disso antes de conhecê-lo. Ele era um homem sério, metódico e religioso (minha irmã me disse que ninguém pode ser metódico e religioso ao mesmo tempo, mas a religiosidade fazia parte do seu método), sua maior qualidade era passar a maior parte do tempo trabalhando. Eu ficava livre para conversar com as vizinhas que ele chamava de fofoqueiras; elas realmente sabiam da vida de todo mundo: “Dizem que o Sr. Walfrido só funciona se a D. Maria enfia o dedo no cu dele”, “ouvi dizer que a Jéssica transa com o pedreiro que está reformando a casa dela”. No mais, eu ficava assistindo TV.
A mãe de Josué era uma mulher ridícula, eu não a conheci, mas só fato de ela ter colocado o nome dos cinco filhos iniciados com a letra jota, já dá para se ter uma idéia. Jeová, como o próprio nome diz, foi o mais esperto dos cinco; era advogado de porta de cadeia e se gabava de ser tratado por doutor pelos ladrões de galinha que contratavam os seus serviços. Ele era o orgulho de Josué que pagou seus estudos, “ele é o que eu não fui”, dizia. Joaquim, o cueca cagada, era o que revelavam suas roupas íntimas: um bosta; vivia dizendo que estava desempregado, mas para se estar desempregado é necessário que se tenha trabalhado antes. Vagabundo, é a melhor designação que se pode lhe dar. Josué falava que iria acabar tendo que sustentá-lo, mas Joaquim teria que trabalhar de um jeito ou de outro. Faria isso em memória de sua mãe ridícula. Dá para acreditar que a besta usou preto durante vinte anos? Em luto por um marido que lhe dava uma surra todo dia. Minhas duas cunhadas, Joana e Josuí, eram duas imbecis como a mãe.
Josué morreu num daqueles raros dias em que eu tinha que lhe abrir as pernas. Ele entrava como um coelho, mas não era nem um pouco engraçadinho, vuco, vuco, vuco e rolava para o canto já roncando. Dessa vez ele não roncou e não acordou nunca mais. Infarto fulminante. Foi muito triste ver meu marido morrer, ele podia ter morrido longe de mim.
Minhas amigas fofoqueiras espalharam para Deus e o mundo que eu o havia matado de tanto sexo. Quem me dera. Supondo que eu sabia a fonte das injúrias que levantaram sobre mim, elas pararam de conversar comigo e se viram livres para inventar mentiras ainda mais cabeludas. Falaram que o matara asfixiado com minhas coxas gordas.
Voltei para televisão que não era mais a mesma, Francisco Cuoco pintou o cabelo e o teleteatro fazia muito tempo que havia sido tirado do ar. Depois que a TV ganhou cores, eles acham que é só fazer estúdios coloridos que os espectadores ficam satisfeitos. Veio a solidão, e com ela a saudade de Josué. Mais de suas broncas e manias, do que de suas rudes carícias; e mais que tudo, da presença masculina: o cheiro de suor, a voz grossa e a obrigação de servir.
Tornei-me a velha que sempre temi, sentada em uma poltrona confortável, tricotando sem dar ouvidos para os sons e cores apelativas da televisão. Mas mesmo na cinzenta velhice, esquecida como as teias de aranha que cresciam nos cantos das paredes que eu não alcançava, eu não me sentia completamente tomada pela tristeza. Às vezes me vinha aos lábios murchos um sorriso juvenil, dizendo que a minha vida ainda não estava pior do que fora.
E assim eu fiquei, me alternando entre o sofá e a cama, até o dia em que tive que atender a campainha. Minha melancolia abriu a porta.
“Estou de passagem pela cidade, posso passar uns dias aqui na sua casa?”, era Joaquim.
Permiti que entrasse, pois Josué o faria. O dia que ele previu chegou quando ele não estava mais aqui. Joaquim colocou as malas no quarto de visitas, foi tomar banho e já no primeiro dia deixou suas roupas sujas e sebentas atrás da porta do banheiro. Relutei-me em pegá-las, mas não agüentava mais a montanha de trapos fedorentos que obstruía minha passagem. Eu não suportava nada nele, seu mau cheiro, seu comodismo, seu desleixo e o pior dos defeitos: a preguiça. Eu tinha que dar um jeito nele, então comecei a procurar coisas para ele fazer: varrer a calçada, levar o lixo para a rua, trocar lâmpadas e as buchas das torneiras que eu estragava intencionalmente, apertando-as mais do que o necessário. Arranjar-lhe afazeres se tornou minha melhor ocupação. Eu também tive que voltar a cozinhar diariamente e lavar as ditas cuecas, meus braços ficaram rijos de tanto esfregá-las, seus excrementos eram pior que piche de asfalto.
Um lindo dia, acordei cedo e fui para varanda tomar meu banho de sol matinal. Quando cheguei, vi Joaquim, aparentemente, conversando sozinho.
“Bom dia, minha Cinderela. Que tal um desjejum fresquinho?”
Ele falava com a samambaia que não lhe respondeu com palavras, o que seria impossível, mas ele agiu como se tivesse captado algum sinal afirmativo dela.
“É pra já”, disse.
Antes que ele me visse, corri para o quarto e me sentei na cama. Senti um nó me entalar a garganta. Eu não tinha um passado que merecesse ser lembrado, chorei. Chorei sem saber ao certo se era por tristeza ou por uma comoção quase feliz. Ninguém jamais havia me tratado com tanta delicadeza, era como se minha vida fosse mais vegetativa que a da samambaia.
Deste dia em diante, passei a olhá-lo com outros olhos. Suas roupas não eram tão fétidas e suas cuecas deviam se sujar, por ele passar a maior parte do tempo agachado, conversando com as plantas. Propus-lhe que fizéssemos um jardim contornando a varanda, ele adorou a idéia. Passávamos o dia inteiro preparando a terra e plantando as mudas que escolhemos juntos.
Ele percebeu que o meu coração havia amolecido e, numa noite chuvosa, silenciosamente deitou-se ao meu lado na cama. Dormimos abraçados e só pela manhã fizemos o que nossos corpos pediam. Agiu como um homem respeitável que desposa sua frágil virgem, com muita calma e delicadeza, me fazendo sentir aquilo que minha irmã chamava de gozar.
As plantas do jardim cresciam como a nossa vontade de ficarmos juntos. A grama vingou, as margaridas ameaçavam florir em breve, os botões das roseiras começavam a exibir suas pétalas, pássaros novos, abelhas e borboletas coloridas apareceram no quintal. Compramos pedrinhas brancas e mais fertilizantes. Não tínhamos pressa de ver nosso projeto concluído, a beleza maior não estava nas plantas, mas na felicidade de dividirmos as tarefas prazerosamente.
Um dia percebemos que não havia mais nada o que colocar ou mudar de lugar, ele me abraçou e disse:
“Acabamos, meu amor”.
Eu não tinha palavras, no entanto meu beijo fê-lo entender o que eu queria lhe dizer, pois ele respondeu à altura: “também te amo”.
Para comemorarmos, marcamos um piquenique para manhã seguinte, seria bem ali: na grama do jardim. Pela manhã preparei as guloseimas, enquanto Joaquim foi tomar banho.
Foi e não saiu mais. Um enfarte, mais fulminante que o do seu irmão, o matou, segundo o médico, sem dor. A dor ficou para mim que ainda podia senti-la. Era como se ele tivesse vindo para me dar a felicidade e o sofrimento que Josué não me dera.
No enterro não fui tratada como a viúva do falecido. Ninguém sabia do nosso romance, para eles eu era apenas uma boa samaritana que acolheu o cunhado necessitado. Achei melhor assim, eu não queria dividir minhas lágrimas, elas eram só minhas.
Joaquim me deixou o jardim. Eu passava horas cuidando das plantas para enganar o meu saudoso coração. Às vezes sentava na varanda e ficava observando os pássaros e insetos. Um dia vi uma abelha voar alto, os zangões foram no seu encalço, um a um morria exaurido, o mais forte a fecundou e ela lhe sorveu toda a vida, para que cumprisse sua obrigação de rainha. Dessa vez não me senti um inseto, pelo contrário, eu era uma abelha rainha.
Cuidei do jardim até o dia em que o caçula, de passagem pela cidade, se hospedou na minha casa e nos meus braços. E eu que nunca fui uma beata, acreditei nas juras de amor de Jeová.
Clique aqui para votar no conto Abelha Rainha
Robert de Andrade
Os Impublicáveis