Moto-contínuo
Na grande cidade pós-moderna, o progresso um dia cultuado se traveste de barbárie. Nela jaz o sonho de felicidade fragmentado em rápidos prazeres. A produção se aliena no consumo, num movimento intenso e ininterrupto que não permite que o presente aceda ao futuro. Um perene agora de necessidades insatisfeitas e renovadas em que nada se fixa e o que seria amanhã se antecipa num eterno hoje em que só há eu e nunca você.
Das entrelinhas e dos lapsos do discurso que a originou, insiste em emergir a desordem que procurou conter em traços firmes. Como atos-falhos, perambulam por suas esquinas angulosas sombras de vidas humanas, que trazem para o abandono público o que antes era restrito às fantasias privadas.
Na cova dos rostos iluminados pelo crepitar de cachimbos e isqueiros, submergem vidas, já ausentes nos olhares opacos, petrificados no objeto que tragam; que sugam na tentativa de recuperar a satisfação absoluta desde nunca e para sempre perdida.
A grande cidade contemporânea é a criatura que se volta contra o criador, como a comida que devora de dentro para fora os obesos que a habitam, expulsando-os do próprio corpo, mórbidos como os rios poluídos às custas das metástases de sua expansão.
A coerência do clássico contorno de suas alamedas arborizadas convive com a esquizofrenia do bizarro trottoir de michês e ratos, que circulam por entre automóveis e carrinhos de cachorro-quente, na perigosa travessia de um bueiro a outro, equilibrando-se em saltos e requebros.
As meninas que voam de suas janelas já não deixam bilhetes, não têm a quem culpabilizar e, na saia justa em que se encontra, já nem mesmo sabe se abriga o masculino ou feminino. O silicone e o photoshop tudo resolvem, mesmo porque já não se é, mas se parece ser, o que se quer, desde que se possa pagar por e, sendo dois em um, melhor para se consumir.
Com satisfação e orgulho por se confundirem na massa que a anima, seus habitantes tragam com prazer a fumaça de seus ônibus, caminhões e velozes carros, imobilizados em meio a tantos outros que entulham os limites renovadamente insuficientes de suas ruas e avenidas.
Sua marca é a obsolescência, a decadência de tudo aquilo que tem que dar lugar a algo novo assim que nasce, num engodo pluralista que se desfaz no mesmo da ininterrupta mudança, em que diferença se desmancha em passiva igualdade especular. Pluralidade indiferenciada e estéril.
A capital pós-moderna é a casa de Narciso, o inferno do eu a contraditar Sartre, onde uma massa de indivíduos é plenamente livre para se afogar nas águas pútridas e sem margens que os reflete interiormente, sem contar com o socorro de algo externo a que possam se agarrar.
E é na casa de Narciso que Prometeu e Tântalo se encontram em seus suplícios, por video-chat.
E por que não demolir tudo, destruir os antigos limites que impedem o livre fluxo de seus frenéticos movimentos? Simples: porque as cores fortes da perversão bárbara só se mantêm sedutoras se lançadas sobre a tela acinzentada de uma neurose civilizada.
Barroso da Costa
Os Impublicáveis