HISTÓRICO FAMILIAR
Ernesto estava preocupado, tenso. Maria, a companheira, percebera isso. Em muitos anos, era a primeira vez que ele não a procurava para brincar, antes de dormir.
Ernesto, 45 anos, nordestino, operador de britadeira da prefeitura de BH. Passara o dia inteiro sob zoação dos companheiros. Descobriram que ele iria ao urologista.
A imaginação também zombava dele. A imagem do médico invadia seu pensamento. Não havia como relaxar e dormir. Não havia ânimo para brincar com Maria.
De manhã cedinho, o caminho para o consultório. A sala de espera. Enfim o médico. Um pterodátilo (dedos enormes).
-Sobe na maca!
– Sim, senhor.
– Fique de costas. Abaixe o tronco e mantenha a bunda levantada.
Fez tudo como lhe era mandado.
– Abaixe as calças.
– Mas, doutor…
– Não se preocupe. É rápido, não dói e é para o seu bem.
Sentiu o dedo e travou. Fechou os olhos de dor.
– Relaxa…Relaxa!
Relaxar como? Aquilo doía. Doía e incomodava. O dedo se movimentou, buscou a próstata, cutucou sua dignidade de macho nordestino. A luva e a vaselina não amenizaram seu sentimento.
– Pronto! Tudo ok, mas lembre-se: ano que vem tem mais. O histórico familiar exige acompanhamento. Seu pai teve câncer.
Saiu triste do consultório. Sentia-se ultrajado, desvirginado. O dedo o machucou e muito. E continuou a machucar por mais alguns dias, até se tornar um “dedinho” de lembrança, até diminuírem as brincadeiras dos colegas:
– “O médico, ao menos, era bonito?”
– “Sente alguma coisa? Sinto que te amo!”
No final de semana, festa na família. Encontrou o irmão, homossexual assumido. Maria, a mulher, fez questão de contar, aos brados, a primeira visita ao urologista. Gritos e risos. Zombaria de família dói mais. O irmão aproveitou para tirar um sarro, descontar anos de gozações. Depois, distante de todos, falou-lhe fraternal e respeitosamente (eram amigos):
– Doeu?
– E como! Não sei como você aquenta. Vinte centímetros entrando por trás… Nunca mais peço à Maria para fazer sexo anal.
– Você é bobo. Machista besta. Um exame de nada não vai tirar sua masculinidade. Basta relaxar que não dói nada. Se você ficar tenso, há resistência. Aí dói, e muito. Lembre-se: relaxa…, relaxa…, relaxa…
46 anos. Festa. Com bolo e parabéns. Muita folia, muita zoação e conselhos do irmão. Havia consulta. Amanhã. Deitou-se lembrando do ano anterior e das palavras do mano (“relaxa…, relaxa…, relaxa…).
A caminho do consultório, no ônibus, só ouvia estas palavras: “relaxa…, relaxa…, relaxa…”
Na sala de espera, no pensamento, a mesma ladainha: “relaxa…, relaxa…, relaxa…”.
Na hora do exame… vai ter concentração assim lá na casa do Carvalho! Relaxou completamente.
– Doeu? Não.
– Foi bom?…
Hoje Ernesto faz ponto na Avenida Afonso Pena, Praça ABC. Seu nome de guerra: Marta Suplicy.
Ernesto relaxa…, relaxa…, relaxa… e goza. E ainda ganha uns trocados.
Seu irmão também fica no mesmo ponto. E de vez em quando comenta:
– O histórico familiar exige acompanhamento…
E Maria? Maria é apenas uma fotografia na parede. E como dói!!!
Eduardo Ezequiel