Desconhecer Uberlândia
Depois de dois dias de trabalho em Catalão, no Estado de Goiás, segui para Uberlândia, onde passaria a noite e embarcaria no primeiro voo para Belo Horizonte, no dia seguinte, às 14:40. Fiquei em um Hotel no Bairro Santa Mônica, bem perto do centro, da prefeitura e do “shopping” como fez questão de enfatizar a atendente. Já tinha me hospedado no lugar antes e o que tinha de melhor ali era poder fumar no quarto, e continuava podendo. Minha quarta vez na cidade, mas sempre foram estadas rápidas, sem tempo para olhar em volta, conversar com pessoas e tentar conhecer um pouco mais a região. Desta vez, eu teria um pouco mais de tempo: 24 horas, quase.
Recorri ao mecanismo de busca na internet e encontrei um bar próximo ao hotel, 1km. Além da proximidade, tinha outros atrativos, era um lugar para quem gosta de rock e eu precisava me livrar dos refrãos das músicas sertanejas que tocavam a torto e a direito no centro-oeste brasileiro; para completar, promoção de chope artesanal: 2 por 10 reais.
Tirei a poeira do corpo com um banho que uma pessoa que trabalha com projetos ambientais como eu não devia tomar. Vesti uma camiseta preta com bolinhas brancas – poá, como dizem as colegas de trabalho –, uma calça xadrez e um All Star cano longo. Pronto, agora é sair a pé, sem pressa e encontrar o bar. Eram 18 horas e as ruas estavam cheias de carros, um tráfego intenso, mas bem mais ameno que o caos do trânsito de Belo Horizonte. Trabalhadores seguiam apressados pelas calçadas, enchiam os pontos de ônibus. Depois do trabalho, a faina continua. As pessoas estavam exageradamente agasalhadas, pelo menos para o meu senso de frio.
Eu ainda não tinha conversado com ninguém de Uberlândia. Comecei a me lembrar das outras vezes que estive aqui e constatei que também não tinha conversado com ninguém, a não ser por questões comerciais ou de trabalho. “Bom dia, o que o senhor deseja?”, “um café, sem açúcar, por favor” e pronto. Certamente, hoje eu teria essa oportunidade, mesmo que tivesse que criá-la.
Continuava na minha despretensiosa flânerie pelas ruas da cidade, mas era um bairro nobre, com pouca vida. Era preciso um olhar mais perscrutador, mais dedicado para tentar encontrar uma brecha nesse padrão que se repetia a cada esquina que dobrava. Passei por uma academia que devia ter o tamanho de um shopping, corpos musculosos, cheios de força, pulando para um lado e para o outro, Narcisos acariciando os bíceps diante do espelho. Em frente, dois rapazes pintavam o estacionamento de uma farmácia de vermelho, paravam e olhavam para belas bundas das moças que malhavam e voltavam infelizes para as suas atividades.
Dois quarteirões seguintes à academia estava o bar. Paredes pretas e motos custons estacionadas em frente. Subi a rampa que dava acesso ao estabelecimento e na mesa mais próxima da entrada havia um homem sentado, devia ter uns 60 anos, cavanhaque branco, com um bigode bem alongado, cenho cerrado, uma touca de couro na cabeça, de modo que não dava para identificar se tinha cabelo ou calvície ali debaixo; coturno, calça jeans, camisa preta do Iron Maiden e uma jaqueta de couro cheia de rebites prateados.
Tive a impressão de que ele era o dono e, se assim fosse, eu provavelmente seria o primeiro freguês da noite.
Cheguei mais e: “boa noite, vim conhecer o bar.”
“Ah, tá.” Respondeu o homem.
“Como funciona?”
“Ficha.”
Ao constatar que ele não era muito de papo, comprei meia dúzia de fichas de chope e fui para o balcão. Visualmente o bar era bem interessante, o som tocava ZZ Top, o que me agradava também. Banco alto, quadros das bandas de rock que eu gostava: Led Zeppeling, Ac/Dc, Rolling Stones. Acomodei-me ali e fiquei rolando uma ficha no balcão até que me apareceu o garçom. Um rapaz de uns vinte e poucos anos, moreno e obeso, fumando uma tora de maconha da espessura de uma salsicha. Colocou um cinzeiro perto de mim e repousou seu beck. A erva devia ser boa, o cheiro não me incomodou. Entreguei-lhe a ficha e o chope não desagradou.
“Aqui você pode fumar em qualquer lugar.”
“Que ótimo.” Saquei meu Luck Strike sabor menta – na verdade fumo o tradicional, mas como em Goiás só tinha desse, comprei. É só não estourar a bolotinha.
“Você também fuma cigarro de bolinha?” disse olhando para a minha camisa de poá.
“É, eu gosto de bolinhas.”
“Você tem moto?”
“Já tive.”
“Qual?”
“Shadow 600cc.”
“Qual pastilha de freio usava nela?”
“Não faço a menor ideia.”
“Então você não é motociclista?”
“Não. Eu só andava de moto.”
Para a salvação do garçom, chegou um freguês mais interessante que eu. Jaqueta de couro e botina, touca preta, cavanhaque. Puxou a banqueta ao meu lado, me cumprimentou com um aperto de mãos, pediu uma Kaiser e acendeu um Hollywood. Legal poder fumar em todos os lugares, mas soprar a fumaça na cara de quem está ao seu lado não é muito elegante. Eles queriam ser tudo, menos elegantes.
O garçom repetiu a pergunta para o cliente que parecia ser velho conhecido.
“Uso pastilhas japonesas.” Respondeu de pronto, como se fosse uma senha para ser aceito na irmandade.
Ao jogar a cinza no cinzeiro e constatar que o meu cigarro era de menta, o recém-chegado me enquadrou: “Você é de onde?”, “Belo Horizonte”, “BH é massa.” Esse parecia mais amigável e resolvi render a conversa.
“Você já foi no Bike Festival de Tiradentes?” Eu trabalhava anualmente nesse evento que reunia motociclistas de todo o Brasil, na cidade histórica mineira.
“Não. Não frequentamos esse tipo de evento. Nosso moto-clube é de vikings, gostamos de ir para a beira do rio. Somos bem roots.” Fitei bem o sujeito procurando algo de nórdico nele, mas não encontrei nada.
De trás do balcão o garçom gritou para senhor de cavanhaque branco que continuava sentado no mesmo lugar: “Presidente, quer um copo d’água?” Ele não só era o dono, como também era presidente, do quê eu ainda não sabia, mas estava bem evidente que se tratava da maior autoridade do local.
Um casal jovem chegou e cumprimentou o presidente que, por sinal, foi bem mais efusivo com eles que comigo. O garçom deixou de lado o celular, contornou o balcão e acertou um soco bem colocado na altura do estômago do rapaz que acabara de chegar com a namorada. Virei para o lado deles a fim de saber o que estava acontecendo e me defender das garrafas, caso elas fossem atiradas.
O rapaz, ainda curvado, com as duas mãos pressionando a área atingida, disse: “Desta vez você me acertou em cheio.” Todos riram bastante, menos eu.
Como já disse, o chope era bom, mas o lugar ficava pior a cada minuto e cada freguês que chegava. A maioria formada por homens tentando imprimir uma masculinidade que não era deles. Era como se eu estivesse em outro lugar que não fosse Uberlândia ou a Escandinávia, no máximo seria um bar texano dos anos 1980, desses que a gente só conhece pelos filmes de Sessão da tarde.
Como já tinham me achincalhado sem muito sucesso, comecei a retribuir. Voltei para o viking disse:
“Vocês sentem muito frio aqui em Uberlândia.” Estavam todos eles com jaquetas de couro, toucas, gorros e eu só com a minha camisa de poá.
“Está frio hoje, mas na periferia é pior.”
“Você mora lá?”
“Claro que não.” Ou seja, os moradores da periferia não eram bem-vindos naquele bar.
Eu ainda tinha duas fichas que me obrigavam a continuar ali. Parti para o garçom que já tinha parado de espancar os clientes e retornado ao seu posto.
“Tem algo para comer?”
“Ter tem, mas não vai dar.”
“Por quê? Eu preciso passar por algum batismo?” Se fosse o da porrada, iria declinar.
“Não é isso, não. É porque a cozinheira chega mais tarde.”
“E o som é só mecânico?”
“É, mas nos encontros do moto-clube tem banda.”
“Pensei que teria banda.”
Tomei os dois chopes e fui saindo sem me despedir. O garçom gritou: “Está indo embora?”
“Sim, estou.”
“Não gostou do bar?”
“Não.”
Saí sem olhar para trás. Não tinha porque olhar, eu não poria meus pés ali nunca mais. Não me adaptei ao ambiente e continuei não conhecendo Uberlândia. Da próxima vez que voltar à cidade, vou procurar algum lugar na periferia.