Guilherme JorguiO que que há

O barulho do Barulhista…

Músico mineiro se destaca na composição de trilhas sonora para teatro e cinema

No início dos anos 2000, num canto mais afastado do corredor central da Escola Estadual Padre José Maria de Man (localizada no bairro Monte Castelo, no município de Contagem, cidade da Região Metropolitana de Belo Horizonte) na escadaria da quadra, um grupo se reunia quase todos os dias. O “uniforme” que os representava não necessariamente era o da blusa com o nome do colégio. Identificavam-se mais pelas camisas pretas com nomes de bandas, letras ou caricaturas de astros de rock; um incontável número de camisas xadrez em tecido flanelado (reflexo do movimento grunge que permeava o momento cultural da época) bermudas no estilo skatista, com bolsos largos e fundos e a cintura folgada o suficiente para serem sustentadas por cintos de lona com fivelas metálicas (o frisson entre essas ficava por conta das da marca Drop Dead) e, claro, tênis totalmente remendados de silver tape, alguns coturnos e muitos All Stars.

Nesse grupo, um aluno se destacava. Baixinho, cabelo aparado com máquina três, tinha em seu braço um conjunto de pequenas tatuagens, mas sobressaia sobre as demais o “A” de anarquia, gravada na parte interna do seu antebraço, cujas extremidades da letra atravessavam o circulo que a contornava.  

Fumava Malboro (escondido, claro) e fazia questão de ser chamado de “G.A”. “Era um apelido de escola, por conta dos meus estudos sobre anarquismos. Nunca deixei de ser anarquista, mas existem muitas formas de viver de maneira anárquica”, explica ele, cujo nome que consta na certidão de nascimento é Davidson Soares, mas que ninguém o reconhece por tal. “Nem mesmo a minha própria mãe”, completa brincando.

De volta à escadaria da quadra, no grupo G.A era um dos que tocava violão. Levava os principais hits da época: cerca de oito músicas do CD Califonication, da banda norte-americana Red Hot Chili Peppers, o punk rock do Green Day e canções variadas do Pearl Jam, Nirvana, Alice in Chains, entre outras bandas de grunge. Também tocava bandas nacionais: Raimundos, Charlie Brown Junior e o Rappa estavam em alta, bem como os cariocas do Planet Hemp. As melhores da MPB também tinham execução garantida, para livre divagação das intenções e subliminaridades das letras. Afora esses, muitas faixas das bandas de rock de Brasília — Plebe Rude, Paralamas do Sucesso, Capital Inicial e, após muitas súplicas, Legião Urbana.

Esses encontros que são parte de ritos “lúdico-pubescentes”, para G.A se transformariam num prelúdio do que lhe reservava os desafios da vida adulta. Ele é hoje um dos músicos naturais de Contagem de grande projeção estadual e nacional. Foi apontado por Martin Atkins, ex-baterista da lendária banda inglesa de punk rock Sex Pistols, como um dos mais interessantes músicos contemporâneos brasileiros; Recentemente, produziu a trilha e os efeitos sonoros de uma apresentação do Grupo Galpão (uma das mais importantes companhias de teatro do país); o saudoso Marcelo Yuka, ex-baterista da banda O Rappa, já em carreira solo, em entrevista à Veja BH citou-lhe como um dos músicos que influenciava seu novo momento artístico. “Foi uma surpresa. A gente conversava pelo MSN, mas nunca pensei que ele gostasse tanto”, conta G.A, com a humildade que lhe é um traço característico.

Filho de mãe cantora de coral de igreja evangélica e de pai baterista, a relação de G.A com a música começou em sua mais tenra infância, sendo presenteado com brinquedos musicais, como pequenos tambores, pianos, flautas plásticas e toda sorte de pequenos instrumentos. Era como se estivesse “predestinado” a ser músico. 

Acidentalmente, em 2006 G.A foi “rebatizado” artisticamente numa passagem de som num estúdio. Como baterista e percussionista, trazia consigo uma grande mesa de objetos com os quais enriquecia a sonoplastia e a percussão das apresentações que fazia. Tinha de tudo: pratos, panelas, brinquedos, ferramentas mecânicas, tanque de gasolina e o que mais pudesse tirar um som. “O técnico de som pedia, um a um, para que os jovens artistas testassem seus instrumentos: ‘guitarrista’, ‘baterista’, ‘baixista’. Ao chegar a vez de Davidson Soares, com toda sua parafernália de objetos reaproveitados, a cabeça do técnico deu um nó, e ele emendou um ‘vai, barulhista!’. A história do seu novo “batismo” foi registrada no jornal O Tempo, na matéria que falava dos dez anos de lançamento do seu primeiro trabalho solo, o “Comecei a Ser”.

“Barulhista” não era só uma sacada do técnico de som. Pesquisando, G.A descobriu que na década de 40 assim eram chamados os músicos tidos como menos “habilidosos”. “Havia os caras que tocavam bem, quem não tocava era o barulhista. Como uso coisas do cotidiano, como um pedaço de carro amassado, faço o defeito virar algo harmonioso. Aí defini: agora vou ser Barulhista”, explicou ele, para outra matéria, sendo essa no jornal Estado de Minas.

Multi-instrumentista, Barulhista tornou-se um dos compositores mais requisitados para a produção de trilhas sonoras para teatro. Pelo menos 37 peças contam com seu trabalho. Venceu duas vezes o Prêmio Sinparc de Artes Cênicas — a mais importante condecoração de reconhecimento dos profissionais do setor.

Foi em 2010 que ele foi convidado pelo diretor Nando Motta para compor a trilha do espetáculo “180 Dias de Inverno. Embora a pesquisa sobre possibilidades sonoras fosse um traço artístico desde os tempos do PLAN (Projeto Luz Anti Normalidade), que desenvolvia com Luiz Rocha, Barulhista começou a pesquisar como funcionavam as músicas de cena. “Assisti muita coisa, conversei com muita gente e tenho um modo de composição que é resultado disso. A trilha foi premiada e isso fez com que muitas pessoas me conhecessem — é para isso que os prêmios servem, apenas para isso”, disse em tom definitivo.

Além de teatro, Barulhista também fez trilhas sonoras para o cinema, cujos trabalhos lhe renderam dois prêmios de melhor trilha sonora: na 11º edição do festival Curta Taquary, de Pernambuco, e na IV Mostra Sururu de Cinema Alagoano.“Desde 2008 penso em colocar sons em cenas, nessa época nem era teatro, eram as coisas que eu vivia mesmo”, explica Barulhista.

Parte da sua formação musical se deu em vários pontos da cidade de Contagem. “Eu o vi pela primeira vez tocando com Luiz Rocha, apresentando-se com o PLAN. Eles estavam nos jardins do Centro Cultural de Contagem e foi uma absurda novidade ver toda aquela parafernália, e ele tocando com coisas inacreditáveis. Coisas como rolo de papel, balde… sei lá, coisas loucas com as quais ele tirava sons. Eu fiquei completamente apaixonado com aquilo desde a primeira vez”, relembra Marcelo Veronez, cantor também de Contagem, com quem Barulhista teve várias parcerias.

“Eu não sabia o nome dele de verdade, e parece que ninguém sabia”, conta Veronez, que o conheceu ainda na época em que era conhecido como G.A. “Eu me divertia muito com a história desse apelido. Quando perguntava qual era o seu verdadeiro nome, ele respondia ‘Geraldo Azevedo’, e caia na gargalhada. Vários artistas as letras iniciais se encaixavam na sigla G.A, e assim riamos bastante”. 

Botando os pés na estrada praticamente juntos, Veronez e Barulhista fizeram muitas apresentações em bares. “Fizemos muito buteco”, relembra. Mais que ganhar “um extra”, os dois estavam em pleno processo de amadurecimento e transformação artística. Assim, muitas dessas apresentações eram experimentações íntimas. Canções famosas eram repaginadas pela dupla. “Ele alterava ritmos, andamentos, era uma loucura. A gente pirava total. Íamos musicalmente para lugares inimagináveis. Às vezes esquecíamos dos outros músicos, que ficavam perdidos até se encaixarem. Era muito divertido e maravilhoso”.

Barulhista e Veronez já passaram toda sorte de “provações”. Tocaram em cima de palcos improvisados, feitos com caixa de cerveja, sem que pudessem se movimentar para que não afundassem com tudo. “Uma vez fomos tocar em Lavras Novas, num frio absoluto, mas nos sentíamos realizados porque estávamos fazendo grana e tocando”. 

Para a maioria dos músicos, levar uma “vida dupla” profissional é o que garante o fechamento das contas no final do mês. Não raro, um segundo emprego é o que custeia a compra de instrumentos, caixas de som, microfones, e o que mais a música pedir. Veronez, por exemplo, já trabalhou como atendente de telemarketing; G.A como frentista. “É bom poder dizer que vivemos como artistas e pagar nossas contas como músicos, mas lembro das aflições que passamos. Aí quando conseguimos pagar nosso primeiro aluguel com música, tudo muda. Mas éramos jovens e está tudo bem. Na juventude a gente se vira mesmo”, explica Veronez, entre de saudoso e realizado.

Eles também tocaram juntos na virada Cultural de BH em 2015, na banda Viada, e no carnaval de 2018. “Fui convidado para fazer a direção artística dos desfiles de um bloco de carnaval de Belo Horizonte, o Havaianas Usadas”, relembra Veronez. “É um bloco gigante, arrasta milhares de pessoas pelas ruas da capital. Propus o tema ‘Chinelactia: a viagem do chinelo espacial’, para fazer essa brincadeira com a Havaianas, com o chinelo e tal”, conta.

Com a aprovação do bloco, Veronez chamou Barulhista para programar o desfile em cima do trio, com sons que remetessem à ideia de uma viagem interespacial. “Ele colocou sons de nave, de comunicação intergaláctica. Eram sons e temas tirados de antigos programas de televisão, filmes, e outras dessas referências que a gente tem”, explicou. A massa de foliões se divertiu bastante com a “transformação” do trio elétrico numa nave espacial. “O pessoal do bloco amou o resultado, foi maravilhoso”.

Veronez também participou das primeiras incursões de Barulhista no universo das trilhas sonoras. À época ele estava produzindo a peça “Isso é para a dor”, da Primeira Companhia — grupo de teatro de Belo Horizonte — e novamente convidou Barulhista para produzir a trilha sonora. “Era uma peça baseada no Diário de Anne Frank, que guardava relação com a perspectiva de mulheres que se escondiam em um bunker em uma época de guerra. Ele fez uma trilha memorável que dava no público a sensação de que o teatro estava sendo bombardeado e estava ruindo. A cena final do espetáculo inclusive era isso. A platéia sentia a agonia da história e do teatro tremendo”, relembra.

Outra parceria importante na história e formação do Barulhista se deu nas apresentações com a banda Constantina. O primeiro show juntos foi em 2007, no projeto Cine Concerto. Eles fizeram, ao vivo, uma trilha sonora para o filme expressionista alemão, “O Gabinete do Dr. Caligari”. “Sempre me lembro desse dia. Barulhista fazia postagens em suas redes sociais dizendo ‘Ele está de volta!’, fazendo menção ao personagem Cesare, o sonâmbulo do longa-metragem. Isso acontecia quando usávamos o vibrafone, por que o case que guarda esse instrumento lembra um caixão, exatamente como o que aparece quando o personagem é revelado”.

A amizade e a proximidade tornou possível até a participação de Barulhista na gravação de um dos álbuns do grupo. “É sempre muito rico estar em contato com ele, que é de uma generosidade e saberia muito bonita de aprender. A cada encontro uma sensação de troca e aprendizado extenso, porque nossos encontros jamais foram permeados apenas por sons, mas também eram sobre vida”, conta Daniel.

Embora seja crítico da relação que Minas Gerais estabelece com seus artistas, sendo esses mais respeitados em outros estados, as razões que o levaram a se mudar para São Paulo, em 2018, foram mais triviais e românticas. Sua companheira, a atriz Michelle Barreto, recebeu um convite profissional para atuar em terras paulistas. Barulhista resolveu acompanhá-la. “Morar aqui era um plano antigo, não só pela questão da minha música ser mais escutada, mas também para mudar de ares. Apesar de ser muito caseiro, gosto de mudar a paisagem”, disse. 

Chegando lá, algumas dificuldades na adaptação. “Devo ter atrapalhado bastante o PIB da cidade procurando o buraco onde colocar o cartão do metrô”, brinca Barulhista, completando: “Ainda me sinto bem caipira, quanto mais converso com paulistanos, mais meu sotaque mineiro carrega. Gosto disso inclusive. Minhas trilhas sonoras para teatro chegaram aqui bem antes de mim, então foi mais uma questão de ser visto para ser lembrado”.

O Astronauta Mineiro

Dado a muitas experimentações, uma brincadeira feita por Barulhista deu origem a uma das esquetes cômicas mais interessantes da internet, o Astronauta Mineiro. Em 2016, ele viu um vídeo de um astronauta mexendo em algo que parecia ser uma antena. Isso lhe fez relembrar sua infância, de quando subia no telhado para “rodar” a antena, a fim sintonizar um canal que saíra do ar. Despretensiosamente, ele fez uma dublagem em cima da imagem e enviou para os amigos. “Era uma brincadeira. Eu ficava pensando em como seria se um astronauta estivesse ‘rodando’ o satélite e gritando para alguém lá da terra”, explicou.

A ideia ficou adormecida. Em março desse ano, nas suas caminhadas matinais (Barulhista acorda às 5 da manhã), ele ficou divagando mentalmente como seria um “astronauta mineiro”, com todo o sotaque caipira e o sossego como traço caricatural. Daí nasceu a trupe composta por “Dilurdes”, “Fi di Dica” que são os que conduzem os enredos, conversando com os astronautas Rogério (epicentro das histórias, mas que nunca se pronuncia), e Edmilson, de pouquíssimas falas.

A personagem Dilurdes é inspirada no músico Richard Neves, tecladista da banda Pato Fu. “Produzimos juntos um disco e, à época, quando eu chegava na casa dele e tocava o interfone, ele me atendia com aquela voz de doninha do interior. Eu me identificava mas ele não abria a porta, justificando — sem que tivesse sido oferecido — que já havia comprado queijo”.

A graça pueril e inocente do Astronauta Mineiro contrasta com as esquetes de humor mais ácido de outros grandes portais — embora nem de longe tenha intenção de rivalizar com quem quer que seja. “A delicadeza que tem o “Astronauta Mineiro”, de alguma maneira, foi muito bem recebida por todo mundo. Há uma inocência no que ele diz que também traz essa identificação. Além disso, o humor simples pode ser propagado com mais facilidade, as crianças assistem com os mais velhos, descobrem seu jeito de falar na tela, se vêem. É importante para que a gente se reconheça vivo”, disse Barulhista a jornalista Ana Horta, na matéria publicada no Portal Gama.

No twitter, não são poucos os perfis que saúdam “Astronauta Mineiro” como uma das melhores revelações do ano. Em entrevista ao Rádio Cast, da 98 FM, ele contou toda a história.

Seus amigos se sentem realizados com toda a dimensão artística de Barulhista. O professor de inglês, Nino Sechi, faz parte da sua turma dos tempos da Escola Padre José Maria de Man. Outro exímio tocador de violão, foi com Barulhista que ele aprendeu a tocar. “Sempre fui muito ligado a música, mas até então nunca tinha me interessado a tocar um instrumento em si, até ver alguns amigos tocando. Com G.A [Barulhista] esse interesse cresceu ainda mais, porque ele tocava de samba a metal no mesmo violão”, relembra.

Nino e Barulhista, apesar da distância, ainda mantém contato. “Uma lembrança que tenho forte sobre ele é conversamos sobre novos lançamentos do mundo da música ou apresentando nossas novas composições um ao outro dentro no “quarto estúdio” que ele tinha na casa da mãe dele, aqui em Contagem. O local tinha uma energia mágica, você saia de lá cheio de ideias para novas músicas, o lugar respirava inspiração”.

Da mesma forma, Marcelo Veronez. “Barulhista mantém o seu lugar de origem; sabe de onde veio e busca saber para onde está indo. Ele torna possível o que qualquer um de nós toma como loucura. Ideias que não necessariamente estão no contexto do comum, do dia a dia. E ele vem e transforma isso no dia a dia, no comum. Ele é muito original e é, artisticamente, exatamente aquilo que eu imaginava que seria”. 

Uma pesquisa rápida na internet mostra que não têm faltado trabalhos para Barulhista. Em parceria com o rapper belo-horizontino Roger Deff, lançou o single “reflexões” do isolamento”. Ele compôs a trilha de “Ficções Sônicas 2”, filme-peça assinado por Grace Passô. Integrou o projeto Macrofonia!, festival pensado exclusivamente para as redes sociais; fez a trilha da peça “Heróis”, cuja história é livremente inspirada pelas músicas de astros do rock dos anos 60 e 70, como David Bowie, Lou Reed e outros artistas da época, entre outras atividades. 

Questionado sobre suas muitas e variadas mudanças, Barulhista conclui refletindo que sempre construiu suas próprias portas. “A única constante é a criação; estar em movimento criativo o máximo de tempo possível, fazer desse movimento um meio de vida e a própria vida. A possibilidade de transitar entre linguagens. Eu poderia fazer exatamente o que estou fazendo em qualquer cidade hoje, mas isso só foi possível por que eu convivi com pessoas diferentes e tive experiências que me empurraram nesse caminho. Em São Paulo estou mais perto de pessoas que me escutam com cuidado e isso modifica bastante o que faço”. 

Por Guilherme Jorgui

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