Robert de Andrade

Vigiado e punido na biblioteca de Babel

A minha geração migrou do vinil para o Spotify, das locadoras para a Netflix, viu a Biblioteca de Babel, do escritor argentino Jorge Luís Borges, se tornar real em uma sequência de três dáblius que oferecia uma infinita fonte de informações. Uma base de dados maior que a Barsa, maior que qualquer biblioteca pública, com grande potencial de gerar conhecimento, além de muitas outras coisas, inclusive monstros.

Eu estava na faculdade de Comunicação Social quando o mundo passava pela grande transformação midiática, movida pela revolução digital, impulsionada pela globalização e a popularização da internet. Era a primeira década dos anos 2000, e as redes sociais eram muito incipientes, ainda com poucas funcionalidades e usuários. O Orkut tinha acabado de desembarcar no Brasil e logo os brasileiros se tornaram o principal responsável, à frente da Índia, pelo sucesso da rede, muito provavelmente por ter chegado antes do Facebook que quando veio, chegou com uma panca de elite, falando inglês e com uma interface limpinha demais.

Na faculdade, alguns docentes estavam pesquisando esse fenômeno e compartilhavam com a turma suas impressões. Como Luíz Otávio, professor de História e Política Contemporânea, que sempre frisava que as redes sociais existiam desde os primórdios e que agora elas estavam existindo também na internet. O que estava acontecendo era uma virtualização do espaço público, fazendo com que os dois espaços, físico e virtual, acontecessem simultaneamente em locais distintos. Foi nessa época que o filme Matrix estreou, como uma espécie de presságio do que estava por vir.

O Orkut, com todas as limitações de uma plataforma que não foi desenvolvida para a web 2.0, já ultrapassava os 30 milhões de usuários no país. A rede agora fazia parte da vida de quase todas as pessoas que eu conhecia. Esse novo mundo, onde havia comunidades para assuntos tão específicos quanto cômicos, como Tocava Campainha e Corria ou Queria Sorvete, Mas Era Feijão. Os conteúdos passaram a ser mais interessantes, ainda que por hora vazios, que os conteúdos, também vazios, que eu consumia na TV aberta e em outras mídias tradicionais.

A memeficação estava substituindo a massificação, as produções audiovisuais caseiras deram uma guinada ainda maior que a ocorrida com o videoclipe, nos anos 80, com a chegada das câmeras VHS de baixo custo. Afinal, agora tínhamos o Youtube e seu impacto ia para além da facilidade produção, abrindo amplo espaço no pedregoso caminho da distribuição. Nasce o fenômeno da viralização, fazendo com que da noite para o dia uma produção simples atingisse milhares de espectadores, como o filme Tapa na Pantera, realizado por três estudantes de cinema, em 2006.

O Twitter passou a pautar muitos jornalistas mundo afora, além de tornar os furos de reportagem bem mais rápidos que nos jornais tradicionais. As informações eram postadas diretamente por quem as escrevia, sem a figura do revisor ou editor, ainda que limitada a 140 caracteres. A plataforma ameaçava a grande imprensa e fortalecia o jornalismo independente.

O Facebook começou a ganhar espaço no país com a implementação do português no Brasil, em 2008. A rede tinha como atrativo a timeline, um espaço para interação bem mais dinâmico que o da rede concorrente, além da possibilidade de envio de mensagem direta. A frase presente no text box para publicação “No que você está pensando?” anunciava que esse ambiente era muito mais que um espaço para criar comunidades de piadas infantis como Nos Estados Unidos, Até Pobre Fala Inglês. Agora, podíamos compartilhar pensamentos e, de pensamentos, passamos a expressar opiniões sobre toda e qualquer coisa.

Enquanto o Orkut era uma máquina de criar guetos (comunidades) que se identificavam por assuntos nonsense. O Facebook passou a ser uma só comunidade gigantesca, onde todos podiam tudo, inclusive extrapolar o espaço virtual por meio da funcionalidade de se criar eventos. Como por exemplo, o emblemático caso do Churrascão da Gente Diferenciada que começou com um evento criado na plataforma, como uma brincadeira de um grupo de amigos em resposta à declaração de uma moradora de Higienópolis, em São Paulo, publicada num jornal grande, onde dizia que não queria metrô na região porque isso traria “gente diferenciada”. O evento saiu das redes sociais e reuniu cerca de 900 pessoas em frente ao Shopping Higienópolis, um dos bairros mais nobres da capital paulista, com direito a carro do som, churrasco de linguiça toscana, farofa e cerveja em caixas de isopor.

Os espaços públicos físico e virtual já haviam demonstrado que não eram indissociáveis, e organizar eventos, protestos e até crimes era só o início da reconfiguração pela qual as relações sociais viriam a passar. Desde as ferrenhas discussões políticas, passando pela fábrica de fake news, colocando em xeque o jornalismo sério, até a tempestade de versões para fatos banais, como a moça que não quis ceder o lugar para uma criança no avião. Embora a mídia tradicional se sinta ameaçada pela descentralização da produção de conteúdo ocasionada pelas redes sociais, ela também está ali se apropriando desses virais. Tanto é que a moça do avião, depois de ser exposta nas redes, logo já estava dando entrevista em um programa global.

Esse artigo não é sobre a moça do avião, até porque as celebridades instantâneas continuam existindo, mas o caso nos ajuda a refletir sobre os espaços que ocupamos na rede. O caso ganhou tantas interpretações e julgamentos, como a celebração ao fato de alguém ter dito não a uma criança de classe média em pleno século XXI, ou a acusação à passageira da janela de ter distorcido a história e se aproveitado da repentina fama.

Se a grande mídia tem seus pecados, principalmente quando o assunto é imparcialidade, como a manipulação do debate entre Lula e Collor, em 1989, já admitido pelo então diretor geral da emissora na época, Boni. As redes pulverizam os recortes dos fatos que já chegam interpretados, julgados e condenados. O ponto de atenção que se deve ter para essa nova, mas nem tão nova assim, dinâmica das comunicações sociais, onde tudo acontece em espaços públicos infinitamente maiores que a ágora em que Sócrates punha em prática a maiêutica e a ironia.

Se olharmos para as redes sociais como um espaço propício ao julgamento e que as sentenças não dependem de juízes togados, muito pelo contrário, nela todos estão aptos a julgar e isso evidentemente se dará de forma pública, temos então um retorno ao modelo de julgamento da Idade Média. Nesse período as punições eram brutais e públicas, incluíam torturas e execuções – que hoje chamamos de cancelamento –, muito bem descrito por Foucault, em seu livro Vigiar e Punir. O autor ainda pode ser citado por sua crítica sobre os sistemas punitivos modernos que controlam não apenas os corpos, mas também as mentes e os hábitos que, embora ele estivesse se referindo ao sistema penal, repetidas vezes as redes sociais sem comportam como tal.

Espaços públicos precisam ser democráticos e regulados, seja ele físico ou digital. O uso das praças às quais levamos nossos cachorros é regulamentado por diversas leis e decretos. Seguimos a maioria dessas regras sem ao menos conhecê-las, dado ao fato de elas já estarem introjetadas em nossa cultura. Mas, quando o assunto é a regulação de um ambiente que nasceu sem regras, logo a discussão descamba para censura, como se a proteção às crianças e segurança das eleições, dois pontos fundamentais da Lei de Serviços Digitais, aprovada pela União Europeia, em 2020, não fossem questões que merecessem total atenção.

Essa polêmica me faz recordar de uma onda que passou pela timeline há alguns anos, em que muitos usuários repostavam uma mensagem dizendo que não autorizaram o uso de suas informações por parte do Facebook. Esses mesmos usuários aceitaram, sem ter lido, o termo de uso da plataforma autorizando uso de seus dados, assim como hoje temos muitas pessoas se opondo à regulamentação das redes sociais sem saber ao certo do que se trata.

A amplificação indistinta das vozes nas redes social, levou uma massa de usuários erroneamente ao exercício de uma pseudoliberdade que pode tudo, menos ser contrariada. Como se a pergunta do Facebook sobre o que estávamos pensando tivesse feito com que a internet ficasse cheia de filósofos que acham que pensam, logo pensam que existem, ainda que só virtualmente.

Robert de Andrade

Previous post

Produção de Os Impublicáveis recebe prêmio

Next post

This is the most recent story.